Partilhamos convosco um (extraordinário) texto do nosso atleta e associado Luis Miguel Santos. Não se trata apenas de um relato de mais uma participação num evento; achamos que
é muito mais que isso: muito bem escrito, é também um conjunto de reflexões sobre as suas capacidades, físicas e psíquicas e, sobretudo, as suas mais profundas motivações e convicções!
"Muda-se de escalão, ou de idade, e não se caminha para novo. Damos por nós a pensar nos tais "e se...?"
E se, para comemorar a entrada nos 60, fizesse algo marcante? Algo duro, simbólico, que já não faço há uns tempos — e que, em tempos, até tinha riscado da lista?
Pensei em voltar a fazer um Ironman, em Coimbra. Mas o concerto dos Guns N' Roses deitou por terra essa hipótese... Outra ideia: voltar aos 100 km. Já tinha feito dez.
A última foi em 2015. E em Portugal, qual é o percurso mais "macio"? Abrantes. Foi para essa que apontei. E inscrevi-me.
Ainda desafiei a minha madrinha para a empreitada. Mastigou, mastigou... e deixou o afilhado entregue à desdita.
A preparação:
Quanto mais idade, menos juízo. Achei que a base de treino das várias atividades que pratico me daria um certo trampolim para uma prova destas. Juntei mais uns treinos e pensei:
"sai uma preparação possível". Mas... não fiz treinos na serra. Nem fora de estrada. Nabo!
O tempo passava, a data aproximava-se, e a convicção crescia: estava a meter-me numa bela alhada. Ando arredado das provas de trail há muito. O equipamento já não é o mesmo.
E o artista também não.
Decidi que ia na mesma. Ou espetava uma lança em África, cruzando a meta até às 23h do dia 12 de outubro, ou então... iria até onde as pernas e a cabeça me deixassem ir.
A partida:
Lá apareci no estádio de Abrantes para levantar o dorsal e entregar os sacos para as bases de vida. Optei pelos 55 e 75 km — em Ronda essa escolha correu bem, podia ser
que aqui também. Deixei nos 55 km alguma nutrição; nos 75 km, nutrição e uma muda de roupa, caso fosse necessário.
O horário da partida — 1h00 da manhã — não me agradava absolutamente nada.
Apesar de alguns relatos que li e vídeos que vi sobre a prova, continuava a zeros quanto ao percurso. Todos eram unânimes: o percurso é rolante, o que pode induzir a
ritmos mais picados... e depois não há gasolina para o resto.
Enquanto esperava pelo autocarro que nos levaria do estádio à zona da partida, ia andando de um lado para o outro, sentindo-me algo deslocado. Já não conheço
ninguém desta malta, e há um certo folclore... Venho de um tempo de coisas mais simples, menos tecnicistas, menos show-off.
Sento-me num banco e escuto dois sujeitos ao lado a falar sobre a prova. Um está como eu — sem saber o que lhe espera. O outro diz que já fez a prova duas vezes e
vai explanando a sua experiência nas edições anteriores. A voz deste último não me era estranha... era o João da CGD, que fazia parte da trupe do Antunes, Guilherme Hora e do
Faustino. Finalmente alguém conhecido. Foi uma festa! E foi o que me valeu para ajudar a passar o tempo até à hora da partida — mais de 1h30 de espera. Estivemos ali no largo a
apreciar a nova fauna que agora desagua no trail e a reviver provas e experiências passadas. Estamos os dois algo deslocados destes novos tempos de "modernidade" e redes sociais assanhadas.
1h00, cheio de sono — bocejei imensas vezes — é dado o tiro de partida.
Até ao rio Tejo, o percurso é sempre a descer, com piso de alcatrão ou calçada. A noite está bastante amena, o que não augura nada de bom para o dia:
são esperados 30 °C, mas a sensação térmica por estes lados é feroz. A progressão faz-se tranquila e, pouco depois de cruzar o Tejo, vira-se à direita e começam os
primeiros trilhos... e o primeiro engano. Já vinha em sentido contrário uma fila razoável de frontais de enganados. Não era no primeiro corte à esquerda,
mas no segundo — um trilho quase paralelo. Lá segui e, não tarda, apanho a primeira subida do dia, bem inclinada. Sem pressa — nunca tenho — vou subindo até
encontrar o fotógrafo num ponto chamado Caneiro. Pelo menos era isso que estava escrito numa enorme tábua pendurada acima do trilho.
Ainda se sobe mais qualquer coisa e depois entra-se num caminho corrível. Lá fui, sem entrar em folias. Depois há uma sucessão de sobe e desce, curto e mais inclinado
que anteriormente, que nos leva ao primeiro abastecimento, instalado na Sociedade Recreativa de São Miguel do Rio Torto. Há o habitual de uma prova destas: doces, batatas
fritas, laranja, tomate, sal, amendoins, água, isotónico, bolos secos, Coca-Cola... Está bem recheado, especialmente para um primeiro abastecimento, que geralmente são mais espartanos.
Aqui fiquei a saber que o primeiro classificado passou com pouco mais de 30 minutos! E também fiquei a saber que o vassoura tinha chegado. É cedo para levar com essa companhia, e
tratei logo de me pôr a milhas dali para fora.
Entre este abastecimento e o de Vale das Mós (21,7 km), o percurso foi algo chato: apanhei alguma areia, gravilha solta, a travessia de um ribeiro... e era sempre levemente a subir — ou
assim me pareceu. No meio da escuridão, surge um casarão, janelas abertas, luzes apagadas, música bem alta vinda lá de dentro e dois calmeirões à porta. Por experiência de outras vidas e
companhias, sei que esta região de Abrantes é profícua em casas de... digamos, de alcouce, no meio de parte nenhuma.
Ainda andei aqui com companhia a espaços: ora ultrapassava, ora era ultrapassado. E por falar nisso, passa por mim um casal a caminhar com bastões, mas com uma pirisca que
quase deitava lume. Soube mais tarde que são presença habitual e vêm de Espanha.
Esta parte do percurso, feita onde Judas perdeu as botas, cercada pela escuridão e por um silêncio pesado, pode ser algo opressora — mas ao mesmo tempo convida à introspeção.
E lá vou, cheio de sono, umas vezes mais à frente, outras mais para trás. Às vezes vejo algum frontal atrás de mim, espero por companhia, talvez um marcador de ritmo. Mas não
resulta muito bem, e geralmente acabo sozinho. A noite, especialmente começando tão tarde como nesta prova, castiga-me. E o descanso não tem sido muito...
Algures na entrada de uma aldeia para os lados da Bemposta, depois de subir bem... perco-me. Atravesso boa parte da aldeia, perdido nos meus pensamentos. Chego a um cruzamento e
percebo que já devem ter passado mais de 100 metros sem fitas — e no cruzamento também nada. Fico a olhar para o vazio: casas fechadas, tudo em silêncio, a reflexão do frontal nas
placas sinaléticas dá um ar completamente fantasmagórico. Aprecio aquilo durante uns momentos e volto para o local onde vi a última fita. Encontro-a — e também encontro três participantes
que vão ser a minha companhia na parte mais animada desta jornada.
O percurso seguia em frente, para cima, e lá vamos. Uma das mulheres, esposa do parceiro que ali vinha, fala pelos cotovelos — meio bruta, sem tempo para minudências. O ritmo
não era grande coisa, mas o que eu queria mesmo era chegar ao fim. E com alguém falador, era bom para dispersar a mente de coisas que não interessam e focar no caminho, mantendo
um ritmo mais uniforme.
Chegamos ao abastecimento em Vale das Mós, onde estava a primeira barreira horária — já com muito pouca folga. Não gostei nada disso. Comemos algo — aqui havia sopa — abastecemos
e seguimos. Tínhamos 5 horas para fazer 30 km e estávamos convictos de que seria possível. Eles já tinham feito a prova e terminado umas quatro vezes. Com um currículo desses,
fiquei ainda mais ciente do valor da companhia.
Mas depois de sairmos do abastecimento, juntou-se a nós mais um elemento: o vassoura!
Nesta altura passamos todos por momentos estranhos: ora estávamos bem, ora não podíamos com uma gata pelo rabo. Num dos momentos em que estava na mó de cima, o meu frontal
iluminava alguém que ia mais à frente, com equipamento cheio de fitas refletoras nas costas. "Oh companheiro, você assim parece uma árvore de Natal!", atirei-lhe. Era o tal que no
início estava junto do João, a tentar saber como era o percurso. O homem nem respondeu.
O percurso não tem grande ciência: muito estradão, trilhos em pinhal, tecnicidade nenhuma.
Lentamente, o sono começa a fazer estragos mais demolidores. E logo agora que a aurora não andava longe... Começo a ter muito sono e já não tenho pernas para
acompanhar o grupo. Lá vão eles todos pimpões! Paciência...
Os rebuçados de café, apesar de saborosos, não surtem efeito algum. Começo a arrastar-me e a hipótese de desistir no próximo abastecimento, na Esteveira (35 km),
começa a ser muito tentadora. O vassoura aparece de tempos a tempos — entre uma chamada e outra. Dá-me ideia que vai falando com alguém da organização. Conheço este filme de outros locais...
A custo, chego ao abastecimento da Esteveira, o ponto mais a sul do percurso, não muito longe da Ponte de Sôr.
Estou mais morto que vivo e desalentado... As pessoas ali tentam dar-me algum ânimo para continuar. Como um pedaço de pão com chouriço assado há horas e, de repente,
alguém se lembra que ainda há café das velhas (café de saco) e vai aquecer um bocado. Soube que nem ginjas e despertou-me um pouco. Decido seguir, tanto mais que a
próxima fase até à Alvega seria a descer suavemente. Mas quando saio... começo logo a subir.
O terreno agora é entre eucaliptais, com piso de seixo e saibro. Após a subida inicial, começo lentamente a trotar e lá deixo o vassoura para trás, entregue aos seus
intermináveis telefonemas. Vou progredindo com pequenos momentos de marcha e animo-me. Sei que vou todo desgraçadinho, mas agarro-me à esperança de chegar ao próximo
ponto de corte — aos 57 km, nas Mouriscas — e aí logo se vê. O pensamento é: "só mais um bocadinho".
Mas a falta de treinos em piso irregular começa a mostrar-se de forma insidiosa... Lentamente, aparecem dores nos pés e tornozelos que, com o tempo, sobem pelos
gémeos e vão incapacitando a progressão. O vassoura aparece de vez em quando e até me elogia: "Eh pá, você agora vai muito bem. Assim vamos chegar a tempo ao ponto
de corte." Vou muito bem... mas cheio de dores.
Lembro-me de estar a iniciar uma descida suave e não conseguir correr. Penso que noutros tempos iria por ali abaixo que nem uma mota de cross. Porra!
A progressão é mais marcada e penosa com bastões do que outra coisa. As sapatilhas, sendo de trail, revelam-se inadequadas para este tipo de terreno: demasiado rígidas, a sola
resvala nos seixos, pouca tração, mais instabilidade nos pés e tornozelos... mais desconforto, mais dores. E o vassoura sempre ao telefone. Raios partam o homem que tanto assunto
tem — e eu que me lixe!
Por vezes tenho de parar uns momentos para aliviar as dores musculares. E a decisão é tomada: não vou seguir até Mouriscas. Mesmo que tenha tempo, arrisco-me a uma
lesão séria — e prova alguma merece isso.
O percurso agora é por pequenos bosques, piso de terra, mas o estrago está feito e as dores mantêm-se. Estamos próximos de Alvega, mas devido à proximidade do Alentejo... nunca mais
se chega ao ponto de abastecimento. E o vassoura sempre ao telefone...
O abastecimento de Alvega (47,7 km) está instalado junto ao campo de futebol do clube da terra. Aqui chegado, o vassoura diz que temos 1 hora para fazer 10 km até às Mouriscas. Respondi
logo que isso era uma miragem para mais no meu estado — e que ficava ali mesmo, para não estragar mais do que já estou. Viro-me para os voluntários que estavam a marcar as passagens e
anuncio que termino ali. O vassoura, certamente aliviado, despede-se de mim e lá vai ele com asas nos pés.
O responsável do abastecimento diz-me que foi o melhor que fiz, porque os próximos 10 km seriam massacrantes. Informa-me que, acabando de arrumar tudo, vão levar-me de regresso a Abrantes.
Como dizia o outro: Consumatum est. Fdx!
Fico ali sentado. Comi alguma coisa, bebi um resto de água com gás e fiquei a pensar no que tinha feito e como ali cheguei. Corria uma certa brisa. O tempo estava quente,
como prometido, mas a brisa amenizava. Telefonei para casa a avisar que tinha chegado ao fim da minha prova. Telefonei também para a minha madrinha e para o Jorginho.
Tendo sido a decisão certa, não é para isto que um gajo se inscreve — e que, mal ou bem, treina. Mas certo é que cometi erros de palmatória:
- Triatlo não é trail, e não há transferência direta de condicionamento físico para as características do terreno.
- Treino de força não te impede de teres problemas musculares.
- O material não é tudo, mas ajuda — e as minhas sapatilhas não eram adequadas ao terreno. Comprasses as Hoka Speedgoat, já sei! Mas também sei onde o sapato aperta o calo...
- A última prova de 100 km foi feita há dez anos, com treinos diminutos. Mas isso foi há dez anos — e o tempo não nos traz para mais novos.
Enquanto esperava pelo Uber Organização, tive tempo de remoer nisto tudo e mais um pouco. Estava desalentado... Nada a fazer.
Lá apareceu o jipe para me levar e, pelo caminho, ainda recolhemos mais dois ou três participantes. Realmente, o trajecto não era famoso — mesmo dentro do jipe fartámo-nos de dar
saltos lá dentro.
Ainda tive tempo de conversar com o organizador, que vinha a conduzir, e trocar algumas ideias. Segundo ele, não querem aumentar a altimetria nem dificultar a vida a quem escolhe a
prova. Vai variando o percurso de ano para ano entre a parte norte e sul do concelho de Abrantes. Diz ele, e bem, que 100 km já são por si só suficientemente duros para se estar a inventar
altimetrias e caminhos só para endurecer a experiência. Recusa-se a abrir trilhos só porque sim. Ali usam-se os caminhos de pé posto que já existem — e a única coisa que se faz é limpá-los.
(Ó cambada de Portalegre, entenderam?)
Já no estádio, agradeci todo o esforço que ele e a sua equipa tiveram para montar a prova. E não está fora de hipótese voltar futuramente — seja nos 100 km ou noutra distância.
Há para todos os gostos, dos 100 aos 10 km.
Hora do duche, comer o que estava previsto no final... e rumar a casa, a Torres Novas.
Com o meu atrevimento de me inscrever no Trail de Abrantes 100, afinal não espetei uma lança em África como pretendia — mas espetei-me sim no sofá assim que cheguei a casa, e
dormi por horas. E quando me levantei dali, foi só para me deslocar para a cama... e dormir até ao meio-dia do dia seguinte.
Este final não teve medalha, mas teve memórias. E que essas memórias sirvam de lição para outras empreitadas — porque nenhuma é igual à anterior, e a experiência, quando aliada à
confiança, pode armar uma belíssima armadilha.
Outra vez será melhor. E, se possível, poder contar com o apoio presencial da minha família, aguardando por mim na meta - seja de 100 seja de 10km."